23 de maio de 2013

Os Privilégios Diplomáticos, em especial a Inviolabilidade.



O presente artigo analisa os privilégios diplomáticos conferidos pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, tendo em vista a relevância gerada em torno do assunto à luz dos acontecimentos narrados e publicizados pelo site "WikiLeaks".

A referida convenção confere inúmeros privilégios aos agentes diplomáticos, dos quais se inicia a análise pelo privilégio da livre comunicação para todos os fins da missão, disposto no artigo 27.1 da CVRD, que consiste na proteção da comunicação oficial da missão, através da conferência de liberdade para tratar dos assuntos que entender necessários. A livre e secreta comunicação entre uma missão diplomática e seu governo é provavelmente, do ponto de vista de seu efetivo e diário funcionamento, o mais importante dos privilégios e imunidades concedidos pela legislação diplomática internacional. Isto porque, sem este direito, a missão não conseguiria cumprir efetivamente duas de suas mais importantes funções: negociar com o governo do Estado acreditado e reportar ao Estado acreditador as condições e o desenvolvimento da missão no Estado acreditado.[i]

Em seguida, temos o privilégio de uso da bandeira e do escudo nacionais pelos agentes e pela missão. Regulado pelo artigo 20 da CVRD, este é um direito tradicionalmente reconhecido pela prática internacional, mas que confere à missão o direito de exposição livre da bandeira somente dentro dos locais da missão, enquanto que a exposição da bandeira e do escudo nacional em via pública deve obedecer às normas relativas ao uso destes símbolos no Estado acreditado.[ii]

Outro privilégio é a obrigação ao Estado acreditado para que facilite o exercício das atividades e funções da missão. Este privilégio decorre da inviolabilidade, que estudaremos em breve, e de acordo com os termos do artigo 25 da CVRD, o Estado acreditado deve garantir que a missão tenha facilidades na obtenção de acomodação, bem como deve conceder privilégios quanto a vagas de estacionamento e não deve criar obstáculos para a plena execução das atividades da missão. Trata-se puramente de um privilégio baseado em cortesias.

Ainda, a CVRD concede o privilégio da isenção de direitos fiscais e direitos aduaneiros aos agentes e às missões. O artigo 34 da CVRD dispõe que os agentes diplomáticos estão isentos, nos países onde se acham acreditados, do pagamento dos seguintes impostos: 1º) impostos pessoais diretos, isto é, os que incidem diretamente sobre o contribuinte e deste passam diretamente à repartição arrecadadora; 2º) impostos que incidem sobre o edifício da legação ou embaixada, quando o mesmo pertença ao Estado estrangeiro. Devem pagar, entretanto: 1º) os impostos indiretos, que incidem sobre objetos de consumo comprados no país onde o agente se acha acreditado; 2º) os impostos reais sobre os imóveis possuídos pelo agente diplomático no dito país; 3º) os impostos que representam o caráter de remuneração de serviços.[iii]

Verifica-se que essas exceções respeitam quase que exclusivamente aos impostos que incidem sobre bens, rendimentos e aplicação de capitais privados do agente, o que constitui uma clara demarcação entre a atividade oficial e a privada do agente e reflete o principio segundo o qual os privilégios não são concedidos para beneficio pessoal do agente e sim para o cumprimento de suas funções.[iv]

Quanto aos direitos aduaneiros, o artigo 36 da CVRD dispensa os agentes diplomáticos do pagamento destes sobre os objetos destinados ao uso oficial das missões, ou ao uso pessoal dos próprios agentes ou das respectivas famílias.[v] Este privilégio aplica-se apenas quando a missão ou o diplomata importar um artigo diretamente do exterior. Quando a compra é feita no comércio local, as taxas aduaneiras já incluídas em um item importado são consideradas como indiretas, do tipo que são normalmente incorporadas no preço do produto ou serviço e, de acordo com o artigo 34 (a) não são objeto de isenção.[vi]

Quanto a este assunto, pode-se levantar uma questão acerca da inspeção da bagagem do diplomata[vii], eis que este pode nela transportar artigos que não estejam abrangidos por esta norma de isenção. Neste sentido, a CVRD, em seu artigo 36.2 dita a regra geral de que a bagagem não deve ser inspecionada a não ser que apresente séria e fundamentada suspeita de que nela estão sendo transportados objetos não isentos. Se for o caso de inspeção, a bagagem somente será inspecionada na presença do agente ou se seu representante[viii].

Por conseguinte, há o privilégio da isenção de prestação de seguro social que, previsto no artigo 33 da CVRD, aplica-se tanto ao agente, quanto aos seus criados particulares, desde que não sejam estes nacionais do Estado acreditado ou nele tenham residência permanente, estando então protegidos pela legislação vigente no Estado acreditado sobre o assunto.[ix]

Confere-se também o privilégio da isenção de prestações pessoais, garantido pelo artigo 35 da CVRD, que visa isentar o agente de prestar obrigações de serviço militar e de serviço público, como, por exemplo, ser convocado a participação de júris; e também o privilégio da liberdade de circulação e de trânsito, estabelecido pelo artigo 26 da CVRD, que garante ao agente que possa livremente transitar pelo território do Estado acreditado, observando, entretanto, as restrições acerca de segurança nacional. Com tal privilégio, a CVRD pretende permitir ao agente o livre exercício de suas funções no território do Estado acreditado, porém sempre em respeito às normas de segurança e defesa nacionais deste Estado.[x]

Derradeiramente, temos o privilégio da inviolabilidade, que consiste no status conferido aos locais, pessoas e propriedades físicas presentes no território de um Estado soberano que não estão sujeitos à sua jurisdição, que imporá a este o dever de abster-se de exercer seus direitos de soberania, em especial os coercitivos, em detrimento daqueles,[xi] além de conferir ao Estado acreditado a incumbência de tomar todas as medidas necessárias para proteger e prevenir eventuais danos que poderiam ser causados aos locais, pessoas e propriedades físicas por terceiros de má-fé.[xii]

Ou seja, a inviolabilidade é tanto um direito, em relação aos membros da missão, quanto um dever, em relação ao Estado. Tal dever manifestar-se-á em duas facetas, quais sejam a obrigação garantir que seus agentes não adentrem o perímetro do local, nem mesmo por razões oficiais; e a necessidade de tomar todas as medidas cabíveis para a proteção contra invasões, danos ou atos que possam abalar a paz da missão ou sua dignidade.[xiii]

Sendo a inviolabilidade reconhecida à missão diplomática, que será composta pelos locais, arquivos, documentos, correspondência, mala diplomática e membros da missão, sejam eles o agente, seus familiares e os empregados da missão,[xiv] esta apresentará características distintas em cada caso, cabendo ser estudada sob dois enfoques: a inviolabilidade pessoal do agente diplomático e a inviolabilidade dos locais da missão.

A inviolabilidade pessoal do agente diplomático se encontra disposta no artigo 29 da CVRD: “A pessoa do agente diplomático é inviolável. Não poderá ser objeto de nenhuma forma de detenção ou prisão. O Estado acreditado tratá-lo-á com o devido respeito e adotará todas as medidas adequadas para impedir qualquer ofensa à sua pessoa, liberdade ou dignidade.”[xv]

Os privilégios não se aplicam apenas aos agentes chefes de missão, mas também a todos os funcionários oficiais da mesma, aos membros de suas famílias que residam sob o mesmo teto, e também ao pessoal não oficial, contanto que não sejam da nacionalidade do Estado onde a missão se acha acreditada, ou nele tenha residência permanente, conforme excetua o artigo 37 da CVRD. Estendem-se também à residência oficial e particular, seus carros, sua correspondência e seus papéis[xvi]; bem como à sua residência e seus bens pessoais, conforme o artigo 30 da CVRD.

Entretanto, a inviolabilidade pessoal não deve ser considerada como um privilégio absoluto. Isto é, se um agente diplomático pratica atos que afrontam a ordem pública ou a segurança do Estado onde se encontra acreditado, que este considere indesejável ou inconveniente a sua permanência no país, tal Estado pode exigir sua retirada e até, em casos nos quais a medida se imponha, fazer cercar sua residência. Contudo, não deverá prender o agente diplomático. Muito excepcionalmente, se mesmo com o pedido de retirada, o agente não é retirado do Estado acreditado pelo seu governo ou não se retira voluntariamente, o Estado acreditado poderá expulsá-lo, fundamentando as razões de tal ato.[xvii]

Ainda, deve ser considerada como propriedade do agente diplomático a sua conta bancária e, assim sendo, é resguardada pela inviolabilidade conferida pelo artigo 30 da CVRD, entretanto não é isenta da fiscalização do Estado acreditado no que tange às normas de remessas internacionais.[xviii]

De acordo com o que já foi dito, os familiares do agente também são beneficiados com o privilégio da inviolabilidade, nos termos do artigo 37 da CVRD, que equipara-os ao agente diplomático, porém desde que observem os requisitos constantes no referido artigo, quais sejam: viverem com o agente e não serem nacionais do Estado acreditado.[xix]

Algumas controvérsias podem ser levantadas acerca do caso de morte do agente e o termo dos privilégios concedidos aos seus familiares. A CVRD refere que estes duram por um ''período razoável'' após a morte, entretanto, tal limite não possui interpretação legal consensual. A autora defende que cabe ao Estado acreditado prever qual é o tempo mais apropriado (na Suíça, este período é de 6 meses, enquanto que na Venezuela é de apenas 1 mês), bem como que se deve analisar também as funções exercidas pelo diplomata. Quanto maior o grau de importância de sua missão, maior deve ser o período de proteção.[xx]

Cabe ressaltar que, no mesmo sentido, apesar de não ser mencionado na CVRD nada acerca do caso de término da relação parental ou de serventia, como por exemplo o divórcio ou a demissão, é possível interpretarmos, ora que por analogia, que não caberá o privilégio do ''período razoável'' a estas pessoas, eis que a proteção aplica-se a estes tão somente em razão da morte do agente diplomático, então nada mais coerente que levantar tais privilégios quando a relação entre o agente e seus familiares ou criados tiver fim.[xxi]

Além da inviolabilidade pessoal do agente, as mesmas prerrogativas são concedidas aos locais da missão, conforme se verifica no artigo 22 da CVRD, exigindo certos deveres do Estado acreditado, que deve garantir que os locais da missão não sejam invadidos ou sofram qualquer tipo de interferência em suas atividades; não permitir a penetração de agentes do Estado acreditado no interior da missão, mesmo em casos de emergência dentro da missão, eis que qualquer agente do Estado acreditado deve aguardar o consentimento do chefe de missão para então adentrar a embaixada ou consulado; e abster-se de fazer busca, requisição e promover embargos ou medidas executórias nos locais da missão, já que a inviolabilidade dos locais da missão estende sua proteção a todos os atos que poderiam ser determinados judicialmente em seu desfavor, proibindo assim qualquer busca, requisição e embargos ou medidas executórias sobre os bens, tanto mobiliário quanto meios de transporte presentes nos locais da missão.

Um ponto controvertido acerca da inviolabilidade dos locais da missão diz respeito ao Droit de Chapelle, que foi considerado durante a preparação da CVRD e consiste no direito da missão de manter no seu interior uma capela e de praticar a fé do chefe da missão.

Este privilégio costumava ser mencionado em acordos diplomáticos anteriores à CVRD em separado da noção de inviolabilidade dos locais da missão, sem dúvidas porque conferia ao pessoal da missão um direito substantivo de promover atividades que poderiam estar em desacordo com a lei do Estado acreditado, violando assim o artigo 41 da Convenção de Viena, que impõe a todos os gozadores dos privilégios e imunidades que respeitem as leis e regulamentos do Estado acreditado.[xxii]

Em razão desta controvérsia, a Comissão de Direito Internacional pronunciou que: ''A inviolabilidade dos locais da missão indubitavelmente inclui a liberdade privada de crença, e atualmente dificilmente sera sustentado que o chefe da missão e sua família, junto com todos os membros da missão e seus familiares, não possam exercer este direito, e que os locais da missão possam conter uma capela para este propósito. Entretanto, não foi necessário inserir uma proposição neste sentido no documento (a CVRD)''.[xxiii]

Apesar do efeito desta declaração, a Convenção somente se manifesta quanto a este assunto no artigo 22, o qual nada dispõe expressamente sobre o Droit de Chapelle, não conferindo nenhuma isenção de proibições impostas pelas leis do Estado acreditado; e também pelo artigo 41 que determina que as pessoas gozando de imunidades e privilégios respeitem as leis do Estado acreditado.

Ainda, consideram-se locais da missão todos os bens móveis, arquivos e documentos da missão, onde quer que estes estejam localizados.[xxiv] Tal privilégio acaba por expandir a inviolabilidade de tais bens para não somente no perímetro dos locais da missão como também para quando estes estiverem sendo transportados. Também titulares de inviolabilidade são o correio diplomático e seu transportador, quando não for um órgão oficial do Estado acreditado, como refere o artigo 27.2 da CVRD, possuindo dois aspectos de proteção: é ilegal que a correspondência seja aberta pelas autoridades do Estado acreditado, bem como que tal documentação seja utilizada como prova em tribunais do Estado acreditado.[xxv]

Neste sentido, após tudo exposto, verifica-se que existem muitos privilégios conferidos aos agentes e à própria missão diplomática e, é nesta realidade que se pode entender porque existe tamanha polêmica acerca das práticas do Sr. Julian Assange à frente do WikiLeaks, tendo em vista que a publicização de informações secretas trocadas entre membros de missões diplomáticas, nos termos da CVRD, deve ser privada e sua proteção é obrigação não só para os agentes, como também para o Estado acreditado.


Daphne Constantinopolos
constantinopolos@gmail.com




[i]               DENZA, Eileen. Diplomatic Law: Commentary on the Vienna Convention on Diplomatic Relations. Oxford, 1998. Claredon Press. 2ª edição. ps. 173 – 174.
[ii]              BRITO, Wladimir. Direito Diplomático. Lisboa, 2007. Ministério dos Negócios Estrangeiros. 1ª edição. ps. 68 – 73.
[iii]              ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. Editora Saraiva. 11ª Edição. São Paulo, 1982. ps. 104 – 105.
[iv]              BRITO, Wladimir. Direito Diplomático. Lisboa, 2007. Ministério dos Negócios Estrangeiros. 1ª edição. ps. 68 – 73.
[v]              ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. Editora Saraiva. 11ª Edição. São Paulo, 1982. ps. 104 – 105.
[vi]              DENZA, Eileen. Diplomatic Law: Commentary on the Vienna Convention on Diplomatic Relations. Oxford, 1998. Claredon Press. 2ª edição. p. 316 – 317.
[vii]             Necessário referir que a bagagem do diplomata não deve ser confundida com a mala diplomática. A bagagem é de cunho pessoal, portada pelo diplomata em viagens; a mala diplomática é aquela usada para transporte de bens e artigos relacionados com a missão.
[viii]            BRITO, Wladimir. Direito Diplomático. Lisboa, 2007. Ministério dos Negócios Estrangeiros. 1ª edição. ps. 68 – 73.
[ix]              DENZA, Eileen. Diplomatic Law: Commentary on the Vienna Convention on Diplomatic Relations. Oxford, 1998. Claredon Press. 2ª edição. ps. 289 – 292.
[x]              BRITO, Wladimir. Direito Diplomático. Lisboa, 2007. Ministério dos Negócios Estrangeiros. 1ª edição. ps. 68 – 73.
[xi]              DENZA, Eileen. Diplomatic Law: Commentary on the Vienna Convention on Diplomatic Relations. Oxford, 1998. Claredon Press. 2ª edição. p. 112.
[xii]             DIHN, Nguyen Quoc, DAILLIER, Patrick e PELLET, Alain. Droit International Public. L.G.D.J. Paris, 2002. p. 750.
[xiii]            GARDINER, Richard K. International Law. Pearson Longman. Londres, 2003. p. 352.
[xiv]            RUIZ, José Juste e DAUDÍ, Mireya Castillo. Derecho Internacional Público. Punto y Coma. Valencia, 2002. p. 218.
[xv]             Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, Artigo 29. 1964.
[xvi]            ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. Editora Saraiva. 11ª Edição. São Paulo, 1982. ps. 104 – 105.
[xvii]            Ibid. ps. 104 – 105.
[xviii]           DENZA, Eileen. Diplomatic Law: Commentary on the Vienna Convention on Diplomatic Relations. Oxford, 1998. Claredon Press. 2ª edição. p. 227.
[xix]            Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, Artigo 37. 1964.
[xx]             Ibid. ps. 359 – 360.
[xxi]            Ibid. p. 361
[xxii]            Ibid. ps. 119 – 120.
[xxiii]           Ibid. ps. 119 – 120.
[xxiv]           Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, Artigo 24. 1964.
[xxv]            Ibid. ps. 183 – 184.